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Liberdade Criativa e a Fusão de Estilos no Set de Floating Points

  • Foto do escritor: frederick garofani
    frederick garofani
  • 11 de set. de 2024
  • 5 min de leitura



Agora, antes de cairmos no julgamento das aparências – me perdoe por tamanha superficialidade nesta perspectiva; mas é impossível não perceber a estupenda feição do DJ Floating Points, com seus óculos de grau redondo, ligeiramente amassados, e o cabelo, ruivo, rigorosamente aparado acima das orelhas e do pescoço, demonstrando extremo cuidado com sua estética. Estética essa que transpõe para a sonoridade que sai dos seus inúmeros LPs, que ele vai puxando um atrás do outro de sua case, postada triunfante por entre jovens com metade da sua idade, jorrando culturas distintas, batidas num liquidificador de sentimentalismo extremo, quase piegas. Ele se apodera de grooves antes esquecidos, agora trazidos à tona por suas cuidadosas mãos no rotary mixer inglês.

A festa em que apresenta esses sons, mundialmente famosa por mostrar DJs em frente às câmeras em diversas venues, é voltada à música eletrônica, ao que chamamos de beat e bpms, com transições bem encaixadas e pouca ou nenhuma volatilidade no discurso sonoro – exatamente o oposto do que o DJ Floating Points faz no seu set de mais de 5h nessa ocasião.

O que mais impressiona é sua capacidade de esmagar, entre outras músicas que fazem o pessoal vibrar, ritmos brasileiros como samba, MPB e groove brasileiro. Numa situação que poderia ser chamada de apropriação cultural, o DJ sequer deixa as músicas tocarem no ritmo pretendido pelo produtor, abusando do pitch das toca-discos acima do desejado pelos intérpretes das canções, descaracterizando completamente a composição brasileira a um nível jocoso. Nota-se o completo descolamento do DJ das obras que está tocando, simplesmente um discurso sem fio, preenchido de uma retórica incrível e tentando parecer ser quem não é. Logo depois, ele volta ao mundo comum, com batidas minimalistas, bpms corretos e sem flutuação, fazendo a plateia vibrar novamente.

Penso na licença poética que um DJ desse calibre assume para lançar mão de João Bosco em "A Nível De..." em um set. Se fosse qualquer outro DJ, brasileiro ou não, causaria indignação, pois uma música sem ritmo, sem bpm e certamente sem estilo conhecido pelos ouvidos ali presentes caberia onde em um set de música eletrônica? (em nenhum lugar).

Fiquei observando os olhos e mãos dos presentes: estavam totalmente desconexos de melodia e ritmo, e com certeza não sabiam do que se tratava a letra dessa obra incrível e extremamente complexa. Antes mesmo de entrar a orquestra e o ritmo inconfundível do samba de Aldir Blanc, a música foi para o infinito inferior dos decibéis, dando espaço para outra obra brasileira, de outro João, mas desta vez de Donato. Isso fez a plateia se desaperceber completamente de sua realidade física, e com certeza muitos se perguntaram: “O que é que ele está fazendo?”. Como já mencionei, não demorou muito para voltar ao seu mundo confortável de bpms corretos, envolvendo a turma e fazendo os olhos se voltarem aos copos e corpos dançando.

Foi cômico, mais uma vez, quando ele apresentou a rainha pianista brasileira, Tania Maria, ao público. Um termo bíblico caberia aqui, mas vou me abster para não causar ânsia – mas tem a ver com “dar pérolas a...”. Nesse sentido, trago a reflexão sobre o papel do DJ em apresentar ao público aquilo que lhe apetece, e não o contrário – apaziguar a expectativa de similaridade sonora esperada desse artista. Embora inglês e associado ao mundo dos chimbais e contrapontos, Floating Points, de fato, apresentou o que quis, e os ouvidos, por mais distantes que estivessem no momento, escutaram. Talvez depois voltem para buscar referência e, por acaso, descubram o mundo infindável de obras desses gigantes artistas brasileiros, cujas músicas dominaram seus ouvidos por breves minutos numa execução acelerada que certamente não agradaria os compositores.

Uma das questões que mais se destacou nessa lambança foi a ausência de estilo proposto pelo artista, especialmente na primeira hora da apresentação. Ele jogou luz sobre a não necessidade de estilos ou encaixes de gêneros. Criar e classificar estilos sugere uma ordem onde não deveria haver. A música surgiu antes, não o gênero. Ninguém pensou “vou inventar o jazz” antes de surgir a sequência de acordes complexos. Pelo contrário, os acordes surgiram, e só depois vieram os termos que encaixariam essas melodias.

Usei o jazz como exemplo porque foi a matéria de maior substância extraída desse set, que logo voltou ao mundo dos beats encaixados e bpms corretos, sem mais explorar a variação natural da música feita por humanos. Ao meio do set, ele voltou à música orgânica, causando desconforto na audiência jovem, que balançava a cabeça para frente e para trás, esperando a próxima gravação.

Algumas feições de aprovação surgiram em frente à câmera, enquanto outros conversavam entre si. Uma diminuição no volume parecia tentar ver se a audiência ainda estava ali – e a confirmação foi que... não. Gritos de aprovação pelo calibre do DJ, mas o som realmente esfriou a pista de dança da geração presente, que tinha em média 20 e poucos anos. Outra baixa no volume, e desta vez conseguiu uma interação um pouco mais aquecida.

Tira os óculos – parece que as aparências agora foram deixadas de lado, ou ele desenvolveu a capacidade de enxergar através das capas dos compactos que agora lança nas toca-discos. Não parece mais franzir o rosto ao enxergar sem os óculos. Me pergunto o que houve.

Mais para a última hora, utiliza violões e vibrações de Steve Reich, o que causou antecipação no público, que antes se esbaldava no mundo dos bpms corretos. Sabe-se que não demora muito para que um chimbal atravesse todo o espectro sonoro da obra pensada para ressoar numa sala de audição, agora completamente invadida por um beat sonoro e contrapontuado. Um ajuste no pitch só deixa mais clara a falta de ritmo na união desses dois mundos. Mais uma vez, a música anterior desce rapidamente aos decibéis inferiores, caindo na pérola que se dá aos...

Me impressiona a capacidade de ausência de estilo do DJ, que prova a real desnecessidade de se encaixar em qualquer estilo ou gênero. Um DJ desse calibre demonstra, mais uma vez, que é possível ter sucesso com um set sem seguir as expectativas do público ou adotar um estilo característico de pista de dança. Ao cozinhar sensações sonoras, ele deixa clara a superficialidade que esse trabalho pode trazer.

Ao final, o set de Floating Points, embora repleto de altos e baixos, nos deixa uma esperança: a de que mais DJs se arrisquem na liberdade criativa, rompendo barreiras de estilos e gêneros, mas sempre com um olhar cuidadoso e respeitoso às obras que utilizam. A mistura ousada pode, sim, abrir novas portas e proporcionar experiências inovadoras, desde que haja um entendimento profundo das raízes e significados das músicas. Que novos sets sigam esse caminho, abusando da experimentação sem perder de vista a essência do que estão apresentando – uma fusão entre o novo e o tradicional que enriqueça o público, sem diluir a autenticidade das obras que formam essa tapeçaria sonora.

 
 
 

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